Entre telas e barreiras: quem fica de fora do mundo digital?


Foto de jovem em frente a um notebook sobre uma mesa com papéis, caneta e caderno. Ela olha atentamente para a tela enquanto segura a haste dos seus óculos e apoia sua outra mão, mecânica, na base do computador.

Por Camilla Almeida*

Hoje, a maioria dos serviços que antes exigiam deslocamento ou uma ligação telefônica pode ser realizada online. Desde agendamentos para emissão de passaporte até pedidos de instalação de equipamentos de internet, como modems, tudo parece estar ao alcance de alguns cliques. No entanto, por trás da proposta de praticidade e de ampliação do acesso, muitas dessas soluções digitais ainda carregam obstáculos invisíveis.

“A minha deficiência é física — eu só movimento o braço e a mão direita. Um dia, precisei entrar no chat do meu plano de saúde para resolver um problema. Quando comecei a conversar com o atendente, fui informada de que, se eu não respondesse em até três minutos, o atendimento seria encerrado”, conta Patrícia Allerberger, jornalista e especialista em acessibilidade. “O que eu tinha para dizer era extenso, eu não conseguiria digitar tudo dentro desse tempo. Naquele dia, não consegui resolver o problema. Tive que esperar meu irmão chegar em casa para digitar por mim o que eu precisava dizer”. 

Embora o Brasil celebre altos índices de conectividade — com 84% da população com 10 anos ou mais tendo acessado a internet — milhões de pessoas permanecem invisíveis dentro dessa estatística. Para elas, o problema não é apenas ter ou não ter internet. É sobre como navegar, interagir e existir plenamente num ambiente digital que ainda não foi pensado para suas necessidades.

A ausência de tecnologias assistivas, somada a sites com interfaces desorganizadas e pouco intuitivas, impõe barreiras silenciosas. Para essas pessoas, a exclusão não é apenas física, mas também digital — e as consequências vão além da frustração diante de uma tela. Trata-se da continuidade de uma exclusão estrutural que compromete sua autonomia e sua plena participação na sociedade.

Apagamento sistemático

Com o advento da internet e a consolidação da Era Digital, o mundo passou a se conectar de formas antes inimagináveis. A rede foi concebida com a promessa de democratizar o acesso à informação e a serviços, funcionando como uma enciclopédia e um balcão de atendimento disponíveis a qualquer momento. No entanto, essa proposta de inclusão desconsiderou uma série de barreiras enfrentadas por parte da população.

Uma pesquisa realizada pela BigDataCorp, em parceria com o Movimento Web para Todos (WPT), revelou em maio de 2024 que apenas 2,9% dos sites brasileiros estão de fato em conformidade com os padrões mínimos de acessibilidade. Ao mesmo tempo, dados do IBGE indicam que o Brasil possui cerca de 18,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, o que representa cerca de 9,2% da população brasileira. 

“Acredito que esse é  um aspecto da sociedade que, ao longo da história, invisibiliza as pessoas com deficiência e criou barreiras ao seu pleno acesso, ainda que de forma não intencional. Não se trata de crueldade, mas de uma questão cultural profundamente enraizada”, conta Joana Belarmino, professora de jornalismo na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e especialista em inclusão digital. “As pessoas com deficiência costumam ser deixadas por último. A gente costuma brincar que somos o ‘etc.’ dos projetos.”

Essa exclusão contínua gera consequências em diferentes aspectos da vida das pessoas com deficiência. Para grande parte da população, pode parecer impensável não conseguir digitar em um teclado, fechar os famosos “X” de janelas pop-up ou até mesmo publicar uma simples foto nas redes sociais. Porém, essas ações cotidianas se tornam barreiras significativas para quem depende de recursos de acessibilidade inexistentes ou mal implementados: segundo a pesquisa inglesa Click-Away Pound de 2019, 69% dos entrevistados disseram abandonar sites devido às barreiras de acessibilidade.

A falta de inclusão digital compromete não apenas a participação social e profissional dessas pessoas, como também afeta diretamente sua saúde mental, alimentando sentimentos de frustração, de isolamento e de impotência diante de um mundo que ainda não as considera plenamente. 

“Os profissionais que desenvolvem tecnologias, em geral, não recebem formação específica sobre inclusão e acessibilidade digital. Outro fator relevante é a invisibilidade enfrentada pelas pessoas com deficiência”, afirma Belarmino. “Muitas vezes, nós não somos reconhecidos como usuários legítimos desses sistemas, como se não fossemos capazes de consumir conteúdos ou de interagir plenamente com o ambiente digital.”

Uma pesquisa conduzida pelo Google Research entrevistou 12 pessoas adultas com limitações leves a moderadas de coordenação motora para compreender suas experiências no uso de smartphones e na navegação online. O estudo revelou que, mesmo enfrentando obstáculos como dor e desconforto, esses usuários fazem uso frequente dos dispositivos móveis. Isso porque muitas atividades consideradas essenciais só podem ser realizadas por meio do celular. Apesar das dificuldades, eles persistem no uso, já que conseguem realizar o suficiente para tornar o esforço, ainda que frustrante, “minimamente compensador”.

Cidadania digital

Em uma sociedade historicamente estruturada para atender às necessidades de pessoas sem deficiência — e cada vez mais mediada por tecnologias digitais —, é preciso questionar sobre o pleno exercício da cidadania por pessoas com deficiência. 

Em 2023, por exemplo, cerca de 90% dos serviços públicos já estavam disponíveis de forma digital por meio do principal portal do governo federal, o GOV.BR. Entre esses serviços estão demandas que vão desde pedidos de transparência relacionados às atividades de assembleias legislativas até requisições de informações essenciais, como o acesso ao portal do INSS.

De acordo com os dados da plataforma TIC Web Acessibilidade, coordenada pelo  Centro de Estudos sobre Tecnologias Web (Ceweb.br), apenas sete sites do governo avaliados apresentaram entre 95% e 100% de conformidade com os padrões de acessibilidade, totalizando 4.148 páginas nesse nível mais alto de adequação. A maioria dos sites (268) ficou na faixa de 85% a 94,99%, somando 163.493 páginas. Outros 997 sites, com 350.249 páginas, atingiram entre 70% e 84,99% de conformidade. Já os piores índices — com até 69,99% de aderência aos critérios — foram registrados em 214 sites, que juntos somaram 47.002 páginas.

Entre os principais problemas identificados está o uso inadequado da linguagem de marcação HTML (uma ferramenta fundamental para estruturar páginas na internet). Quando mal aplicada, compromete a organização dos elementos como texto, links, imagens e conteúdos multimídia, além de dificultar o funcionamento de recursos assistivos. Assim, o acesso a plataformas governamentais — frequentemente indispensáveis para garantir direitos básicos e acessar serviços essenciais — torna-se limitado para pessoas com deficiência. 

“O uso inadequado de tecnologias, como HTML, e a criação de interfaces com comandos difíceis, como arrastar e soltar ou realizar movimentos complexos, tornam a experiência mais desafiadora”, disse Reinaldo Ferraz, especialista em desenvolvimento Web do Ceweb.br e do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). “Por isso, é essencial oferecer alternativas que permitam a interação de formas diferentes. Em todas essas áreas — design, conteúdo e desenvolvimento — existem boas práticas de acessibilidade que, se aplicadas corretamente, evitariam muitos desses obstáculos.”

Em um contexto em que a cidadania é cada vez mais condicionada à interação com interfaces digitais, uma parte significativa da população acaba sendo excluída e tendo seus direitos negados. 

“Muitas vezes, a pessoa com deficiência não consegue comprar o ingresso que deseja, fazer uma inscrição importante ou até disputar uma vaga de emprego, simplesmente porque a plataforma digital não permite que ela navegue de forma autônoma”, disse Suzeli Damasceno, coordenadora do Movimento Web Para Todos. “Ela não consegue acessar informações sobre um serviço de saúde, preencher seu imposto de renda ou exercer plenamente sua cidadania. Isso é extremamente grave.”

Tecnologias assistivas

As tecnologias assistivas são um conjunto de produtos, dispositivos, equipamentos, técnicas, estratégias e serviços desenvolvidos para ampliar a acessibilidade, promover a independência e melhorar a experiência de navegação desse público no ambiente online.

Entre os recursos mais utilizados atualmente estão os leitores de tela, que transformam o conteúdo visual em áudio e possibilitam que pessoas com deficiência visual acessem sites e aplicativos com mais autonomia. Teclados adaptados e personalizados também são importantes para usuários com mobilidade reduzida, enquanto assistentes de voz, como Siri e Google Assistente, facilitam o uso de tecnologias digitais por pessoas com limitações motoras ou dificuldades com mouse e teclado.

Além disso, plataformas de redes sociais e comunicação já incorporam ferramentas próprias de acessibilidade, como legendas automáticas e sistemas de transcrição. Recursos disponíveis em serviços como YouTube e Zoom, por exemplo, beneficiam diretamente pessoas com deficiência auditiva, ao permitir o acompanhamento de vídeos e chamadas em tempo real.

Apesar de muitas redes sociais já oferecerem ferramentas voltadas à acessibilidade, ainda é frequente que os usuários não tenham conhecimento dessas funcionalidades ou não percebam sua importância. Como consequência, grande parte do conteúdo compartilhado não utiliza esses recursos, mesmo estando disponíveis nas plataformas. Isso não se limita apenas às soluções tecnológicas, mas também a práticas como a audiodescrição — recurso que descreve elementos visuais de vídeos e imagens, garantindo que pessoas com deficiência visual ou baixa visão possam compreender o conteúdo.

“A ausência de descrição de imagem ainda é um problema muito comum. O mesmo ocorre com a falta de transcrição de áudios. No YouTube, por exemplo, muitos vídeos contam com legendas automáticas geradas pela própria plataforma”, explica Ferraz. “No entanto, ainda é frequente encontrar arquivos de áudio, treinamentos e tutoriais sem qualquer tipo de transcrição ou explicação visual. Nesses casos, o conteúdo sonoro ou visual é apresentado sem qualquer recurso complementar que permita o seu acesso pleno.”

Além disso, apesar de sua relevância, os avanços tecnológicos voltados às tecnologias assistivas ainda são recentes. Um exemplo disso é o Instagram, que, embora tenha sido lançado em 2010, só passou a permitir a inserção de texto alternativo em imagens — recurso essencial para leitores de tela — a partir de 2018. Já as legendas automáticas em vídeos só foram introduzidas em 2022, e ainda assim, disponíveis apenas em alguns idiomas.

O Facebook, criado em 2004, também demorou a implementar melhorias nesse sentido. A funcionalidade de texto alternativo automático em imagens foi incorporada em 2016. A inclusão de legendas em vídeos ocorreu gradualmente, entre os anos de 2016 e 2019. 

“As redes sociais foram desenvolvidas para cidadãos que enxergam e que não têm nenhum tipo de deficiência”, relata Belarmino. “Muitos desenvolvedores ainda demonstram desconhecimento em relação às particularidades do uso da internet e das redes sociais por esse público. No entanto, já é possível observar um movimento crescente de preocupação e iniciativas voltadas à acessibilidade digital.”

Meios para inclusão digital 

“Acessibilidade digital é um conjunto de práticas que envolvem tanto o uso de ferramentas quanto adaptações de linguagem, código e design. Tudo isso é feito para tornar os ambientes digitais mais acessíveis para todas as pessoas”, explica Suzeli. “Isso significa permitir que qualquer pessoa, independentemente de suas habilidades ou limitações, consiga navegar em sites, aplicativos ou totens eletrônicos de forma autônoma.”

A acessibilidade digital está diretamente alinhada à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência. O artigo 63 da legislação estabelece que é obrigatória a adoção de recursos de acessibilidade em sites mantidos por órgãos públicos ou por empresas com sede ou representação comercial no Brasil.

Além do amparo legal, há também normativas técnicas que seguem padrões internacionais de acessibilidade na web, como as Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo Web (WCAG). No contexto nacional, destaca-se a NBR 17225, norma da ABNT publicada em março deste ano, que apresenta exigências e recomendações para o desenvolvimento de conteúdos e aplicações digitais acessíveis.

Especialistas reconhecem que houve avanços significativos — tanto no desenvolvimento de tecnologias quanto no aumento da conscientização por parte das plataformas e dos usuários —, mas alertam que essas melhorias ainda são insuficientes para assegurar o acesso universal aos conteúdos disponíveis na internet. 

“O fato de o tema estar começando a ganhar visibilidade e ser debatido já representa um grande avanço, especialmente se considerarmos que, há alguns anos, isso sequer era mencionado”, relata Allerberger. “Por outro lado, muitos recursos de acessibilidade ainda não funcionam corretamente e, em vez de facilitarem, acabam se tornando mais uma barreira na comunicação para as pessoas com deficiência.”

Em boa parte dos cursos de graduação, inclusive fora do campo da tecnologia, a temática da acessibilidade ainda é negligenciada. Os especialistas ressaltam que a inclusão desse conteúdo nos processos de formação acadêmica é um passo crucial para promover uma mudança de mentalidade entre os futuros profissionais. Ao compreenderem desde cedo a importância de tornar ambientes digitais mais acessíveis, esses profissionais estarão mais preparados para criar plataformas, aplicativos e sites que atendam às necessidades de todos os usuários, incluindo pessoas com deficiência. 

Outro caminho apontado como necessário é o fortalecimento das leis que tratam da adoção de boas práticas de desenvolvimento e da incorporação de recursos de acessibilidade no meio digital. Tornar obrigatória a aplicação dessas diretrizes, bem como fiscalizar e advertir plataformas que não estejam em conformidade, são medidas vistas como estratégias eficazes para estimular maior responsabilidade e fazer com que a sociedade reconheça a urgência do tema. 

“Acredito que a acessibilidade não deve ser tratada como algo separado, como se fosse uma etapa posterior — do tipo ‘vamos desenvolver primeiro e, depois, pensar em acessibilidade’”, relata Ferraz. “Ela precisa estar integrada à cultura da empresa desde o início, fazendo parte do processo de desenvolvimento das aplicações. E entendo que isso é algo que se conquista com o tempo, por meio de capacitação, mas também com uma certa dose de obrigatoriedade.”

Futuro mais inclusivo

“Pessoas com deficiência são excluídas de conversas importantes sobre desenho e a implementação de tecnologias. Isso significa que novos produtos vêm com a mesma e antiga exclusão. Sem abordagens inclusivas, não podemos realmente responder às necessidades das pessoas. E acabamos com desigualdades ainda maiores e vieses não intencionais”, disse o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Türk, para o Debate Anual sobre os direitos humanos das Pessoas com Deficiência, em 2025. 

A afirmação de Türk ressalta a importância de reconhecer a exclusão digital de pessoas com deficiência como uma afronta aos direitos garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Informações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) revelam que quase um bilhão de pessoas ainda não têm acesso a tecnologias assistivas – especialmente em países de baixa e média renda – limitando sua autonomia e participação plena na sociedade.

Com o avanço da Inteligência Artificial (IA) e o crescimento da conscientização em torno da acessibilidade digital, abre-se um leque de possibilidades para o desenvolvimento de soluções inovadoras e tecnológicas que reforcem o compromisso social com a inclusão. Um exemplo significativo é o aplicativo Be My Eyes, que ganhou destaque durante a pandemia ao permitir que pessoas com deficiência visual fossem conectadas, por meio de videochamadas, a voluntários dispostos a ajudá-las em tarefas digitais do dia a dia.

“Acredito que o simples fato de estarmos debatendo esse tema hoje em dia, somado à presença crescente de influenciadores com deficiência falando abertamente sobre suas vivências — mostrando seus gostos, desejos e trajetórias profissionais — já representa um avanço importante”, relata Patrícia. “Tudo isso planta uma semente de esperança de que, nas próximas gerações, o capacitismo seja cada vez menos presente e possamos construir ambientes, tanto virtuais quanto físicos, verdadeiramente inclusivos e acessíveis.”

Um novo capítulo

Todos os textos desta edição da Babel, incluindo este, contam com recursos de acessibilidade digital, como audiodescrição e descrição alternativa das imagens. A escolha por implementar essas ferramentas não é apenas técnica, mas conceitual: surge como resposta direta aos debates trazidos ao longo da publicação sobre exclusão digital e o direito à informação.

Além disso, esse texto conta com um recurso multimídia que busca testar os conhecimentos do público sobre inclusão digital e despertar o debate entre os leitores. O quiz também contém os recursos de acessibilidade utilizados no texto.

*Camilla Almeida é estudante do 7º período de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Esta reportagem foi publicada originalmente na Revista Babel.


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