
Por Eli Maciel e Jeniffer Deus*
“A cadeira de rodas não é uma prisão. Ela me dá liberdade. Só consegui fazer faculdade e trabalhar por causa dela”, diz Paty Allerberger.
Você já parou para pensar em como a tecnologia pode ser transformadora ou excludente? Para milhões de pessoas com deficiência, a acessibilidade digital é a chave para a autonomia no dia a dia. Mas quando ela falta, até tarefas simples viram obstáculos.
Paty Allerberger conhece bem essa realidade. Ela é jornalista, estrategista de conteúdo digital e uma voz ativa no debate sobre acessibilidade e inclusão. Cadeirante desde o nascimento, ela compartilha sua jornada pessoal e profissional, destacando como a tecnologia pode ser uma aliada poderosa para a autonomia, mas também como a falta de acessibilidade digital impõe barreiras diárias.
Nesta conversa com o Movimento Web para Todos, Paty fala sobre representatividade, desafios, a importância de desmistificar a deficiência e sua visão para um futuro digital verdadeiramente inclusivo. Em dezembro do ano passado, ela entrou para a rede de voluntariado do WPT, onde tem dedicado parte de seu tempo em atividades relacionadas à promoção da cultura de acessibilidade digital pelo país.
WPT: Como você costuma se apresentar para as pessoas?
Paty: Acho que a primeira coisa que eu falo é que sou tagarela. Se der corda, eu falo sem parar. Também digo que gosto muito de ler e, para quem curte signos, sempre menciono que sou aquariana. Depois falo da minha formação, que sou jornalista, e só por último digo que sou uma pessoa com deficiência. Isso é só mais uma das minhas características.
WPT: E sobre o que você gosta de tagarelar?
Paty: Gosto muito de ler e conversar sobre livros, séries, filmes… E gosto muito de cachorros. Sou bem aberta a puxar conversa. Só fico mais quieta se não conheço ninguém, mas se tiver abertura… [risos]
WPT: Conte um pouco sobre sua trajetória profissional e o que te motiva hoje.
Paty: Me formei em jornalismo porque sempre gostei de ler e escrever. O objetivo era criar uma revista voltada para mulheres e adolescentes com deficiência, já que nunca me vi representada nas revistas que existiam. Mas quando me formei, em 2014, quase ninguém mais lia revistas [risos].
Aí fui trabalhar com redes sociais, como social media, em várias agências – nenhuma voltada para o público com deficiência. Ainda assim, percebi o quanto as marcas têm dificuldade de se comunicar com esse público. E foi numa aula da pós-graduação que veio o clique: por que não usar as redes sociais para falar sobre acessibilidade e inclusão? Desde então, passei a trabalhar com empresas que têm essa preocupação. A Sondery foi uma delas. O que me motiva hoje é justamente isso: ajudar marcas e profissionais a enxergar pessoas com deficiência como potenciais clientes e a se comunicar com elas.
WPT: Houve um momento que mudou sua forma de ver o mundo?
Paty: Sim. Quando comecei a trabalhar com acessibilidade e inclusão mais de perto. Eu sempre pensei nas questões arquitetônicas, por causa da minha deficiência física, mas passei a prestar atenção nas necessidades de pessoas com outros tipos de deficiência. Hoje é impossível “desver”. Quando acesso um site ou ando pela rua, penso em várias realidades além da minha.
Lembro da primeira vez que precisei me descrever para uma atividade com audiodescrição. Fiquei em pânico, sem saber o que falar primeiro. Sempre soube da existência da audiodescrição, mas nunca tinha parado para pensar em como fazer até precisar.
WPT: Você usa bastante tecnologia no seu dia a dia?
Paty: Muito! Tanto no trabalho, com redes sociais, quanto na vida pessoal. Aplicativos me ajudam a fazer muitas coisas sem sair de casa, o que elimina a preocupação com acessibilidade física. Posso pagar contas, fazer compras, sem pedir para alguém fazer pra mim.
WPT: Quando descobriu que acessibilidade digital é um direito seu?
Paty: Já sabia que acessibilidade era um direito, mas só entendi que a digital estava incluída quando comecei a atuar mais com diversidade e inclusão. Fiquei feliz ao saber disso, mas hoje, o que mais me surpreende é ver quanta gente ainda não sabe.
WPT: Já enfrentou alguma situação difícil por falta de acessibilidade digital?
Paty: Precisei falar com meu plano de saúde por um chat que encerrava automaticamente se eu demorasse mais de três minutos. Tenho movimento em apenas uma das mãos, então não consigo digitar rápido. Tive que esperar meu irmão chegar para me ajudar no dia seguinte. Esse tipo de prazo é curto demais até para quem não tem deficiência. Percebo que até os próprios atendentes não têm muita paciência para esperar você terminar de digitar.
WPT: Tem percebido alguma melhora na acessibilidade de sites e redes?
Paty: Sim, tem melhorado. Descrições de imagem ainda precisam melhorar. Mas já encontro botões com contraste melhor com mais frequência e até símbolos de acessibilidade atualizados, como vi no site da prefeitura da minha cidade. Mas ainda falta muito. E sugerir melhorias ainda é um processo burocrático demais, desestimula. Às vezes, entro em um site já pensando: “Qual vai ser a dificuldade dessa vez? Com quem eu vou ter que brigar hoje?”
WPT: Como você se sente quando um site ou app é acessível?
Paty: Muda tudo. Dá para fazer as coisas super rápido, com uma mão só, sem pedir ajuda ou depender de ninguém. É raro, mas quando acontece, penso: “Hoje ninguém vai estragar meu dia.”
WPT: O que gostaria que empresas e plataformas entendessem melhor?
Paty: Que deficiência é só mais uma característica. Pessoas com deficiência têm desejos, vontades e autonomia. Existe uma associação equivocada entre deficiência física e deficiência intelectual. Isso precisa mudar. Faria bem não só para as pessoas com deficiência, mas para a sociedade no geral.
WPT: O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre seu jeito de viver e se comunicar?
Paty: Que minha deficiência não me limita. O que me limita é a falta de acessibilidade. A cadeira de rodas é uma aliada, não uma prisão. Sou quem sou também por causa da deficiência. E gosto de fazer piada comigo mesma. É meu jeito.
WPT: Como você imagina um mundo mais acessível?
Paty: Meu sonho de princesa [risos] é não precisar transformar tudo em projeto, sem ter que pensar em tudo com tanta antecedência. Poder sair de casa sem planejar tanto. Marcar exame e a acessibilidade já estar garantida, sem eu precisar pedir e sem só me informarem que existe vaga de estacionamento acessível (afinal, o exame é dentro do local e não na vaga de estacionamento, né?). Que os lugares já pensem nisso antes de aparecer uma pessoa com deficiência. Ir à praia num bate-volta sem fazer mil cálculos, sem me preocupar se o hotel é acessível. Acessibilidade pensada desde o início, antes de alguém com deficiência chegar. Esse é o sonho.
WPT: Tem alguma frase, livro ou perfil que te inspira?
Paty: O livro “O Ano em que Disse Sim”, da Shonda Rhimes. Ela passou um ano dizendo “sim” a tudo que a assustava. Tenho um “sim” tatuado no braço, pra me lembrar de tudo o que eu já conquistei e ainda vou conquistar, porque enfrentei meu medo e disse sim. Também indico o perfil @estanteinclusiva, perfil no Instagram que eu criei, que traz livros escritos por pessoas com deficiência.
*Eli Maciel é especialista em acessibilidade digital e comunicação inclusiva. Jeniffer Deus é gestora de projetos em acessibilidade. Ambas participam da Liga Voluntária do Movimento Web para Todos.